O local onde um vinhedo está plantado é considerado um dos grandes fatores de influência da qualidade de um vinho, pois toda a geografia daquela área – o tipo de solo, a inclinação do terreno, o clima, a quantidade de chuva e sol, e até a flora e fauna que ali habitam – influenciam as características das uvas. No mundo dos vinhos, o termo usado para identificar tudo isso é terroir.
O valor do terroir vem desde o Império Romano e foi rigorosamente investigado durante a Idade Média pelos monges beneditinos e cistercienses. Porém, a ideia de delimitar fronteiras a fim de regulamentar a produção dos vinhos de determinado local só teve origem no século XX.
Isso ocorreu na década de 1930, em Châteauneuf-du-Pape, localizado no sul do Vale do Rhône por esforço do Barão Pierre Le Roy de Boiseaumarié. Sua preocupação com o crescimento de falsificações e a produção desleixada de alguns produtores da região o motivaram a liderar um comitê que estabeleceu regras específicas para a elaboração do vinho, demarcando a área onde deveriam estar os vinhedos e modo de produção. Foi criado, assim, o protótipo das Denominações de Origem, conhecido como Appellation d’Origine Controllée (AOC), em francês.
Apesar de sua importância histórica e de ser a denominação de maior prestígio do sul do Rhône atingindo altos preços, os vinhos de Châteauneuf-du-Pape tiveram sua reputação afetada devido a duas questões, principalmente: o estilo do vinho e a qualidade variável entre produtores.
A descrição clássica de um Châteauneuf é ‘vinho tinto, encorpado e com alta graduação alcoólica (ao redor dos 15%)”, o que atualmente é incompatível com o gênero mais procurado pelo consumidor, que deseja vinhos mais leves e frescos.
O TERROIR
Às vezes, é necessário entender que há coisas que dificilmente podem ser mudadas em um vinho, principalmente por causa do seu terroir. No caso dos Châteauneuf, dois fatores contribuem para o estilo do vinho, sendo o primeiro o clima quente e seco da região, que vem se intensificando com o conhecido aquecimento global. Tais realidades – calor intenso e escassez de água – são elementos que contribuem para a maturação das uvas e, se o momento da colheita é mal gerenciado pode gerar vinhos alcoólicos e com baixa acidez.
Outra causa para o estilo do vinho é a Grenache – principal casta que compõe o blend – que, para alcançar o seu grau perfeito de maturação necessita chegar à graduação alcoólica em torno dos 15%, caso contrário apresentará taninos claramente rústicos.
O ‘pulo do gato’ é onde a Grenache está plantada dentro da denominação. Os melhores vinhedos são aqueles cobertos pelos famosos galets – grandes pedras que desceram as montanhas e se acumularam naquela área. Ao mesmo tempo que os galets liberam calor na superfície (contribuindo para a perfeita maturação da Grenache), eles formam um cobertor sobre o solo de argila logo abaixo, conservando a umidade necessária para que a vinha mantenha o seu metabolismo funcionando durante o verão e outono – épocas de seca.
La Crau é o cru mais valorizado de Châteauneuf, pois, além do solo de galets, está no topo de uma colina ao sudoeste da região, beneficiando-se de brisas frescas e temperatura levemente mais baixa que os vinhedos mais baixos. Tudo isso contribui para que a Grenache amadureça perfeitamente, sem perder o frescor tão necessário para dar equilíbrio ao álcool do vinho.
Em relação à qualidade, mesmo que o terroir seja favorável, o produtor é peça fundamental. É certo que eles não podem sair das regras da AOC para conservar o direito de colocar Châteauneuf-du-Pape no rótulo, mas atenções como o manejo do vinhedo, escolha correta da data da colheita e a extração cuidadosa de taninos durante fermentação são decisões independentes e podem ser tomadas de forma a buscar a excelência e contornar problemas como o álcool desequilibrado, taninos ásperos e sabores excessivamente maduros.
Isso tem sido alcançado, particularmente, pela nova geração de vignerons, que buscaram formação nas melhores escolas de enologia e viajaram o mundo para conhecer o que outros países têm feito para atingir qualidade em seus vinhos.
A NOVA GERAÇÃO
Um dos melhores exemplos desta nova geração é Florent Lançon, atual responsável pelos vinhos da Domaine de la Solitude. Sua linhagem vem das famílias Martin (nativa da região) e Barberini (ilustre clã da Toscana, sendo um dos membros mais famosos o controverso papa Urbano VIII). A propriedade existe desde 1604 – muito antes da criação da AOC Châteauneuf-du-Pape – e a família teve ativa participação em momentos históricos da França como a Revolução Francesa, Guerras Napoleônicas e combate à filoxera, que devastou os seus vinhedos. Seu pai, Michel, e tio, Jean, foram a geração anterior, passando o bastão para Florent com louvor.
Além do cuidado aos vinhedos, Florent é também o enólogo da propriedade e trouxe refinamento aos vinhos. Seu cuidado inicia justamente no cuidado do vinhedo e escolha dos blends de forma a obter equilíbrio. Das 18 uvas autorizadas a entrarem em um corte de Châteauneuf tinto, o domaine aposta na Grenache, Syrah, Mourvèdre e Cinsault para os tintos.
A adega de vinificação foi positivamente modernizada, com tanques de cimento, que permitem o controle de temperatura ao mesmo tempo que conserva os aromas mais delicados e o frescor do vinho. A extração de taninos é delicada e o amadurecimento é mesclado entre barricas e demi-muid (barril 500 ml), de forma a não impactar o vinho com excesso de madeira.
A sua versão branca do Châteauneuf-du Pape é composto de Clairette, Bourboulenc, Roussanne e Grenache blanc e aqui vem o toque inquieto de Florent. Ele vinifica a Clairette com as cascas e engaços para intencionalmente dar nuances de oxidação ao vinho, como ocorre nos ‘vinhos laranjas’. Em seus primeiros experimentos, a Clairette correspondia a 10% do vinho e, a partir de 2018, passou a 45% do corte. O resultado é um vinho complexo, com aromas que unem flores, especiarias e melão confit, enquanto na boca é rico, porém fresco e leve toque áspero de taninos, que dão textura e corpo a este belíssimo vinho.
Texto por Bianca Veratti DipWSET
VINHOS: Domaine de la Solitude
Châteauneuf-du-Pape Rouge ‘Tradition’
Châteauneuf-du-Pape Blanc ‘Tradition’
Châteauneuf-du-Pape ‘Cuvée Barberini‘
Châteauneuf-du-Pape ‘Cuvée Cornelia Constanza’